Comente este texto

Data 30/08/2010
De Marla Andrade
Assunto A seca

A SECA

Marla Andrade

A seca domina a terra, a vida, as pessoas. Lugar de escassez, de pouco envolvimento e muita fé. Foi nessa terra, no sertão da Paraíba que nasceu Zé, como tantos outros. Desde criança já era diferente dos oito irmãos. Calado, ficava muito tempo parado, no mundo da lua, observando as pessoas. Quando lhe mandavam fazer algo, não demorava muito, lá estava ele com o olhar vidrado, esquecia do mundo, da vida, de tudo. Era um mergulho em um lugar só seu, íntimo, uma outra vida, sem a terra rachada pela seca, a falta de água, a pouca plantação, a vaquinha, os bodes, aquele ar modorrento, abafado, aquela vida crua. Zé entrava em um devaneio longo e profundo, passava por lugares nunca vistos, por terras nunca habitadas, por animais fantásticos, tudo fruto de sua imaginação delirante. Daí surgiu seu apelido, Zé Aluado.
Ele era o quarto filho, por isso nem recebera a atenção dos primeiros, e nem dos últimos. Era um garoto magro, mais alto do que o normal para sua idade e por isso mesmo parecia ainda mais abobalhado do que já era. Sua grande mania era fazer muitas perguntas, ficava horas parado, pensando e de repente soltava uma pergunta. Geralmente seus pais não sabiam responder, eram perguntas “sem cabimento” diziam eles, “vá pensar im algo que preste” respondiam sem preâmbulos.
A família nunca tinha freqüentado a escola, assim como praticamente todos os vizinhos, eram pessoas humildes e que entendiam do tempo, da terra e dos animais a partir de sua própria vivência, não tinham como responder a tantas perguntas “sem sentido”. Zé indagava os porquês da vida, dos animais, da terra, da água. Enquanto as pessoas ao seu redor acordavam cedo e iam direto para a lida, pois o trabalho é quem dá continuidade à vida nordestina, Zé ficava a refletir a pedir explicações para tudo que via e vivia.
A mãe dizia já estar cansada desses devaneios:
_ “num presta nem pra tomá conta do irmão mais novo, se passa um bode na porta de casa, pronto! Cabô-se tudo”, o resto do mundo ficava esquecido. ”Im qui diabos ele pensa só Deus sabe!”.
Por tudo isso a mãe ficou feliz quando Zé Aluado completou sete anos e começou a ir ajudar o pai na roça, pegando na enxada, mas seu pai dizia o tempo todo:
– "Esse mininu num dá pra capiná, vive im ôtro mundo, quando eu oio já tá cum a cabeça poiada na inxada, pensano na morte da bizerra! Num trabaia nada, as semente serve pra tudo menos pra prantá, e a pouca água que nóis tem escorre das mão como terra seca."
Nem os meninos das roças vizinhas entendiam Zé Aluado, não deixavam ele participar das brincadeiras, ninguém queria ele por perto. Ele era jogado de um lado pro outro, pois tinha pouca ou nenhuma serventia onde fosse. Os pais batiam nele como uma solução para tirá-lo daquele torpor. Até que um dia, a mãe não agüentando mais, resolveu falar com o padre, pois o que o homem não resolve, só Deus pra resolver. O padre achou então que Zé aluado podia passar uns tempos na Igreja, ajudando nos preparativos da missa, assim poderia ter alguma utilidade. Zé ficou naquele dia mesmo morando na Igreja, chorou muito, mas sua mãe lhe disse:
– "Fio, qui tu tá mió, im casa tu num presta pra nada."
Essa foi sua despedida, sem remorso, nem tristeza, pois bezerro doente tem que ser separado do rebanho para não estragar o resto.
O tempo passou, e Zé Aluado teve contato com algo que ele nem imaginava que existisse: os livros. Aprendeu a ler e escrever, o mundo se abriu para ele como uma gaiola para um passarinho, e ele voou, voou muito mais alto do que todos pudessem imaginar. Estudou, se formou, e um dia voltou para sua cidadezinha para estudar tudo aquilo que ele, quando criança ficava pensando sobre a terra e os animais e que seus pais nunca souberam responder. Ele se tornou doutor em biologia e foi descobrir os mistérios da vida na seca nordestina. Quando Zé Aluado chegou na roça onde seus pais moravam as crianças saíram gritando atrás dele:
– Olha o dotô Zé aluado, olha o dotô Zé aluado!!
Chegando em casa esperava rever sua familia, ao empurrar a porta encontrou apenas sua mãe, cuidando do almoço e nem percebera sua presença. Ele entrou na cozinha e fez um barulho como para avisar de sua chegada, a mãe mal olhou pra trás, voltou-se novamente para o fogão à lenha e disse:
– Tô veno.
Zé Aluado entrou, olhou a casa em que morou durante parte de sua infância e esperou. O que esperava? Seu pai e irmãos chegariam da lida para o almoço, e então? Andou pela sala e pelos quartos, passou várias vezes pela cozinha, sua mãe continuava a mexer nas panelas como se ele não estivesse ali. Zé pegou novamente as malas e saiu calado, não havia o que fazer nem dizer. Ao sair de casa o sol bateu forte no seu rosto, aquele sol nordestino que penetra no corpo. Olhou para o lado, as crianças brincavam com os pintinhos, os bodes passavam nas portas das casas e os urubus voavam em círculo em algum ponto distante, olhou então para o chão, rachado e seco, quase sem vida e seus pés começaram a andar...

 

© 2008 Todos os direitos reservados.

Crie um site grátisWebnode